terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Capítulo 1 – A busca

Capítulo 1 – A busca.


Ele olhava atentamente aquele velho ventilador empoeirado girar suas três lâminas, visivelmente empenadas, em movimentos lentos e ruidosos. O calor abafado e o som irritante daquelas pessoas conversando e fofocando o entorpeciam, a ponto de expelir sua mente para longe, quase que em uma defesa instintiva de seu ser. Divagando em seus pensamentos insólitos em um local que o acalmava, como de costume fazia, se desligando daquele mundo monótono e que ele às vezes julgava medíocre. Precisou ter tido o nome chamado três vezes, sendo a última em tom elevado, como um pequeno grito, inclusive chamando a atenção de todos, interrompendo aquele falatório e burburinho, e finalmente o trazendo de volta para aquela realidade tediosa. O jovem apenas sorriu sem se importar, sequer teve a face ruborizada apesar dos muitos olhares para ele, apenas levantou-se, arrumou seu boné para trás e acenou com a cabeça discretamente para a secretária que houvera lhe chamado, e como de costume, andou até o final do corredor e adentrou a velha porta, não antes de bater duas vezes, anunciando sua entrada assim.

- Há quanto tempo não? - Indagou em um tom de sarcasmo uma já senhora, elegante por sinal. - E como está o tratamento? Ainda tomando seus remédios como prescrevi? – Sentenciou indo direto ao assunto.

- Eu preciso realmente responder essa pergunta? - Respondeu sem titubear, com um tom levemente áspero. - Creio que você, digo, que a Senhora, já sabe a resposta. Se estivesse tudo bem, eu não estaria aqui!

- Fico lisonjeada... - Retrucou ela cinicamente. - Rafael, há quanto tempo você vem aqui? 15 anos? Quando vai compreender, que você precisa dos seus remédios, que precisa seguir com o tratamento.

- A senhora sabe o que aquelas drogas causam em mim... - Respondeu rispidamente, se sentando no divã, enquanto olhava para aquela mulher seriamente, fitando-a nos olhos. - Quando eu era criança isso não importava, mas agora...

- Você deve fazer escolhas... Mas hoje, depois de tanto tempo, não sou mais sua psicóloga, sou sua amiga. Então aqui vai um conselho, tome cuidado com suas escolhas, porque para cada uma delas, haverá uma consequência, e que às vezes poderá entrar em um caminho sem volta.

- Eu sei, acho que essa foi uma das primeiras frases de efeito que a senhora usou em nossa seção. - Zombou ele, porém desta vez de forma amena, de fato uma brincadeira.

- E pelo jeito, até hoje você ainda não a segue, será que existe no mundo alguém tão teimoso quanto você?

- Sim... A pessoa que até hoje, tenta me consertar! - Riu, ainda com que um sorriso de canto de rosto, tímido em sua alegria momentânea.

- Você não precisa de conserto, não diga isso. Só precisa de um cuidado especial!

- Ah... – Esbravejou. - Sem essa de cuidado especial... Isso é sinônimo de ser retardado! - Exclamou ele, um tanto que exaltado, sisudo enquanto bufava sozinho.

- Você e esse seu temperamento... Mas diga-me, Rafael, afinal o que veio fazer aqui? Já que remédios que eu te passo você não toma, e meus conselhos há anos pararam de surtir algum efeito? E sei que não são pelos meus belos olhos verdes que aqui você veio...

O jovem apenas riu, enquanto retirava o boné, e passava a mão algumas vezes em seus cabelos, bagunçando ainda mais eles, logo o cobrindo novamente sem se importar.

- Bem... Os sonhos mudaram...

- E quais mudanças foram?

- Lembra-se do padrão?

- Claro... Nenhum controle de suas ações, sempre em uma fuga intermitente que acabava com a aparição de um ser sem face e sua morte de uma forma trágica. Tenho cada um dos relatórios, imagens, terapias e hipnoses em minha mente, você é mais do que um paciente, e sabes bem disso.

Ele sorriu por alguns segundos, ficou sem uma resposta, e por isso limitou-se a agradecer quase que silenciosamente, finalmente ficara sem graça.

- Então... Desta vez foi diferente, depois de mais de uma década com esse maldito pesadelo, eu estava livre.

- Livre?

- Sim...  Eu estava ciente de minhas ações e controlava meu corpo, como se realmente aquilo fosse a mais pura realidade. E eu tinha a vontade de enfrentar aquele ser que tanto me causou mal, mas ele não apareceu.

- Continue...

- Estava andando em uma rua larga, alguns carros passavam zunindo, mas minha percepção ali era limitada, pouco eu via ou até mesmo ouvia, apenas o que realmente estava próximo ao raio de minha visão. Foi quando eu a vi...

- Alguém conhecida?

- Não, ao menos não que eu me recorde. Era uma moça bonita, mas ao mesmo tempo comum, parecia estar triste com algo, não sei, mas algo fez com que eu focasse meu olhar nela, mesmo eu tendo controle do sonho, algo fez com que eu quisesse olhar e me aproximar dela. Mas foi quando literalmente o sonho se transformou em um pesadelo. Eu tive a impressão do próprio cenário mudar sob meus pés, não ele exatamente, mas os detalhes... Tudo com um ar medonho e grotesco, exceto aquela moça, intocável pela podridão que invadiu minha mente. E quando eu me aproximei dela, ela virou as costas e começou a andar, e bastou um único passo meu e eu senti aquele odor...

- Ele voltara a aparecer?

-Sim, aquele ser desgraçado...  - Comentou, soando frio e com uma leve alteração em sua respiração. - Surgiu repentinamente, e como de costume, me matou... Mas antes, ele pela primeira vez me disse algo.

- O que ele disse? - Questionou ela, surpresa.

- Disse: “Finalmente eu te encontrei! Não mais poderá salva-la... E tua alma já me pertence e assim todos condenados ao flagelo estão!”

- E como você se sente, Rafael?

- Não sei Doutora... Mas depois de tantos anos, uma mudança dessas, eu achei que a senhora pudesse me dar alguma boa razão. Por que depois de tanto tempo, ele resolveu me dizer, e o que significa isso. Ou quem era aquela moça...

- Olha... Os sonhos nada mais são do que a própria idealização do seu subconsciente. O que sentimos, vimos, ouvimos, e por mais que não atinja nossa percepção no momento do ato, captamos e quando dormimos essa imagem estará lá gravada e poderá ser representada de mil e uma formas. O significado tende a ser algo muito interpretativo e até mesmo interpessoal. Você está passando por uma fase de auto ajuste, interrompeu um tratamento médico, ou seja, seu corpo está liberando substâncias químicas, e isso afeta diretamente ao cérebro e a seu controle neurológico. Somados a isso, você passou da fase de adolescência e hoje já é um homem, então naturalmente seu corpo já sofre um processo drástico... Querer uma explicação, ou melhor, ter uma explicação é algo infelizmente vago. E que não vou te enrolar com esse papo de psicólogo, porque sabemos que de nada ira adiantar.

- Fico feliz com a sua sinceridade...

- Sei que esperava mais de mim do que essas palavras até certo ponto frias. Mas é como eu disse, um sonho ou pesadelo pode vir como representação de um trauma, de uma lacuna que tenha ficado no seu passado, e sabemos que não é o caso. Ou até mesmo um desejo ou vontade reprimida. Então esse sonho que sempre te atormentou não foi causado por algum distúrbio, na verdade é um processo inverso, o sonho lhe causa o distúrbio. E é como um sintoma intermitente, você não possui nenhum problema físico ou mental, então precisa de intervenção medicamentosa. Você sabe muito bem disso, quando toma seu coquetel, acabam-se os sonhos não?

- Sim... E também todo o resto. Eu fico quase como um vegetal. É capaz de um rabanete pensar mais do que eu. Eu só queria realmente entender o significado desses sonhos... Se não é sinal de loucura, o que é afinal?

A senhora levantou-se e caminhou até a estante, onde pegou um livro empoeirado e dentro dele um pequeno bilhete escrito em uma folha amarela.

- Eu nunca acreditei nisso... Mas, talvez lhe traga um pouco de calma e com sorte algumas respostas. Vá a esse endereço, é um antigo amigo da família, um estudioso em... Praticas não muito convencionais a ciência. Talvez seja mais um estelionatário que gosta de se aproveitar da fé alheia, mas de qualquer forma é um bom homem e de humor inesquecível. Soube que ele tem uma assistente que interpreta sonhos, visões e esse tipo de coisa.

- Nossa, uma psicóloga renomada como à senhora me recomendar um médium com cara de bruxo, realmente me impressiona... Meu caso deve estar realmente perdido!

- Talvez assim você encontre algumas respostas e acalme um pouco essa sua mente. Ou volte a tomar seu remédio.

- Obrigado, Elisa! Obrigado realmente Doutora.

Ela apenas sorriu cativante, enquanto que ele se despediu já cruzando a porta, estava visivelmente afoito e queria respostas o quanto antes.

- Finalmente chegou à hora... E agora nada mais impedirá sua chegada. - Sorriu, enquanto gargalhava sozinha em meio aquela larga sala.

Capítulo 2 – A Estranha

Capítulo 2 – A Estranha


Ele saíra afoito do consultório médico, sequer cumprimentou a secretaria que ao notar olhou para ele com desdém, mesmo que no fundo ele sequer tenha percebido a olhadela, passou batido por todos e só parou brevemente para por seus óculos escuros, arrumar novamente o boné, como se fosse um de seus cacoetes. Postou-se a andar dentre a multidão que se perdia na rua, em pleno horário de rush, estava ele confiante, como a muito não ficava, enchia o peito de ar, respirando fundo, como se finalmente tivesse tido uma boa notícia em sua vida de dissabores.

Enquanto andava um tanto que distraído, afinal sua mente se perdia em meio às lembranças da conversa que tivera com sua doutora sendo abocanhado por divagações, e da curiosidade que despertava em sua mente fértil, sobre o tal médium, sofrera uma forte trombada em seu braço, o que o fizera quase cair com o baque recebido, olhou para trás, e virá uma aparente jovem andar apressada sem alterar o ritmo da passagem, sequer havia se importado e o menosprezara, fato que o incomodara profundamente.

- Olha por onde anda, tem educação não... – Gritou em tom enfurecido, enquanto que segurava o braço com a outra mão, sentira certo ardor pelo tranco recebido.

A moça parara de súbito por alguns segundos, virando-se lentamente para ele, o fitando friamente sem qualquer expressão em seu rosto, o que de certa forma o espantou, mas de forma alguma ele se importava ou temeria alguma reação contra ele, ainda mais vindo de uma pequena jovem, como ele certamente a classificava, afinal tinha ela quase a metade do seu tamanho.

Ela o fitou, enquanto inclinou o rosto lentamente para o lado, sua pele branca e belos olhos verdes se destacavam no meio daquelas pessoas.

- Ta olhando o que? – Exclamou de súbito ele, enquanto ela se aproximara rapidamente, o assustando um pouco desta forma, que dera um passo levemente para trás, afinal aquela garota era sem dúvida estranha.

- O que está fazendo? – Questionou, ao vê-la próximo a ele, mais do que ele realmente queria, ocupando o seu próprio espaço, se sentiu invadido e pressionado.

- Você... Você me vê?

Ele bufou e caiu na gargalhada, chamando a atenção dos que estavam próximos a ele, enquanto que o fitavam, olhares julgadores e cheios de questionamentos, com certeza, ali ele fora taxado de louco por alguns.

- Nossa... Pelo visto não sou o único por aqui a precisar de consulta psicológica... Cada maluco que há nessa cidade! – Exclamou ele, virando-se e andando, ignorando-a, não tinha certeza se ela era doida, ou zombava da cara dele, em ambas as hipóteses, preferia simplesmente ir embora, e foi o que fizera.

- Espere... Espere, por favor.

Ignorando o chamado um tanto que desesperado, e sendo rude, retirou os fones de ouvido do bolso, estes ligado em seu celular, os pôs no ouvido e apertou no aparelho para que começasse a tocar uma de suas músicas favoritas. Se tornando apenas mais um dentre a multidão que se entorpece e se esconde da realidade, em suas vidas egoístas e sozinhas, a passos largos, andando e andando, não deixando que nada alheio a ele o interferisse.

Enquanto andava perdido em sua mente, apesar de sentir uma fumigação incômoda em seu braço, apenas seguindo o ritmo da canção que ouvia, ao atravessar a faixa em um dos cruzamentos, surpreendeu-se com um carro que vinha desgovernado contra sua direção apesar do sinal estar fechado, capotando algumas vezes em altíssima velocidade, mal teve tempo de se mexer e foi bruscamente acertado, sendo arremessado bruscamente contra a parede de uma das lojas. Sentiu seu corpo esmigalhar-se, e a mente sair de seu corpo.

Estava ele jogado no chão, suas vistas rodopiavam por aquele cenário caótico, e em meio às visões que tinha, focou-se em um ponto longe, e virá aquela jovem moça de antes, o focando, sorrindo alegremente.  Foi à última imagem que ele tivera antes de ficar inconsciente.

Afastem-se, afastem-se...

Ouvia o som vago e distante de uma sirene, assim como o burburinho incômodo próximo a ele, não distinguia o que falavam, mas sabia que era sobre ele. Sentia o sangue borbulhar de seu corpo, assim como se esvair, da mesma forma que o abafado do clima seco, ficando ainda pior, pela quantidade de gente próxima a ele.

Saiam da frente... Cervical, vamos imobilizar, e levar para ambulância, rápido! – Ordenou um dos paramédicos.

Sentia seu corpo ser puxado, fixado, arrastado, e até mesmo sacolejado já dentro da ambulância, aquele som forte das sirenes, de eventuais buzinadas, e algumas freadas bruscas, o irritavam.

Estamos perdendo ele...

A escuridão crescia dentro de seu ser, e cada vez ouvia-se menos, já não mais sentia o andar do corpo, sequer ouvia algum barulho, nem mesmo aquela sirene intermitente, que por muito se fixava em sua mente como um som claro.

- Afastem-se, carregar! – Gritou uma das socorristas, enquanto untava o desfibrilador com um gel.

Sentiu um leve formigar nas pontas do dedo, e um curto flash brilhar, em meio aquela escuridão que tomava seu ser.

- De novo... Carregar...

Novamente aquele flash, contudo mais fraco, e distancia, sentia um vazio o tomar, e se entregava por fim aquela sensação apaziguadora, talvez a morte não fosse algo tão ruim, sua vida não era mesmo das melhores, sem amigos, sem namorada, distante da família, o que realmente o prendia naquele mundo? Nada pensava ele, mesmo que entorpecido e perdido em sua própria mente.

- Mais uma vez...

- Pare... Já é tarde... O perdemos... – Balbuciou outro, enquanto segurava os ombros da paramédica.

Mas... Ele é tão novo...

Fizemos o que podíamos... Registre à hora da morte!

Não havia mais nada, apenas uma negritude como uma pedra de silício, sua mente era rasgada e parecia que seu corpo seguiria o mesmo destino, mas ouvira uma voz, uma doce voz, um olhar esverdeado surgiu em meio aquela escuridão, e logo viu uma feição feminina, reconhecera-a, era aquela jovem que o encarara, que o tocara e que por fim sorrira, sentiu um forte calor tomar seu corpo, o ar mesmo que turvo invadir seu ser, e mesmo que fracamente, seu coração voltou a bater.

- É impossível... Ele tem sinal vital...

- Mas já passou doze minutos... Não pode...

- Oxigênio... Rápido, vamos levá-lo a sala de cirurgia...